quarta-feira, 8 de abril de 2015

O vexame do convite a Padilha

ELIO GASPARI

Coisa jamais vista: um ministro é convidado para outra pasta e joga a presidente na frigideira
Para o governo, diante das manifestações de rua e da queda de sua popularidade, era necessário haver mais diálogo "de coração aberto". E assim foi convidado o ministro Eliseu Padilha. Dilma Rousseff em 2015, chamando-o para a pasta da coordenação política? Coisa nenhuma, Fernando Henrique Cardoso em 1997, nomeando-o para o Ministério dos Transportes. Atazanado pelas pesquisas de opinião e pela inevitável rebelião do PMDB no Congresso, o presidente agradou ao deputado Michel Temer e recompôs sua base parlamentar. Padilha assumiu dizendo que "qualquer suspeita de corrupção deve ser investigada a fundo".
Em 1997, FHC relutou durante três meses para nomear Padilha. Em 2015, num episódio inédito, foi ele quem relutou em fazer a troca. São comuns os casos em que uma pessoa é convidada para um ministério e recusa. A escolha recente de Luiz Carlos Trabuco para a Fazenda foi um exemplo disso. Em geral essas sondagens são mantidas em sigilo, e a recusa é educadamente dissimulada. No caso de Trabuco construiu-se meio vexame, pois ela foi pública. Com Padilha, articulou-se o vexame total. Um ministro da pasta inútil da Aviação Civil resistindo publicamente a trocar de cadeira foi coisa nunca vista. A ideia de que, mesmo assim, continue ministro, jamais foi imaginada. A doutora Dilma ficou numa posição vexatória. O desconforto cresce quando se sabe que Padilha iria para uma posição relevante. Faltou ao PMDB o respeito à regra de etiqueta enunciada pelo bandido Elias Maluco aos policiais que o capturaram: "Não esculacha".
Nas semanas seguintes à reeleição da doutora, o comissariado do Planalto teve a ideia de excluir o PMDB do centro de decisões do governo. Os 55 milhões de votos que ela recebera pareciam um cacife suficiente para aquilo que os petistas achavam que era uma manobra estratégica. Como todo o poder emana do povo, eles eram o povo e não haveria o que discutir. Arlindo Chinaglia seria o novo presidente da Câmara, o ajuste fiscal seria o salto para a marquetagem do novo patamar de progresso e, enfim, começaria o governo do PT. Era delírio e deu tudo errado, com quatro comissários batendo cabeça na coordenação política do governo. A ida de Padilha para essa cadeira fazia muito sentido. Seus cinco antecessores vieram do PT, e a entrega da posição a um cacique do PMDB mostrava um passo conciliador da doutora.
O PMDB está rebelado (até onde e para quê, só seus caciques sabem) e parece surfar a onda de impopularidade que emborcou o governo da doutora. Há aí uma curiosidade: ele se aproveita da insatisfação da rua, mas não a representa. Quem quiser testar essa hipótese pode sair no próximo domingo com uma faixa: "Viva Renan Calheiros" ou "Todo poder a Eduardo Cunha". Ambos estão na lista do procurador-geral Rodrigo Janot. Os marqueses do partido sabem disso e movem-se com a única finalidade de enfraquecer o governo. Para quê?
Olhado da rua, o PMDB não é parte da solução, mas do problema. Por pior que seja a agenda da doutora Dilma, é difícil encontrar alguém que prefira a de Renan Calheiros e Cunha, até porque não sabe qual seja.
Folha, 08.04.2015.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Doação como álibi

Suspeitos argumentam que receberam recursos de forma legal durante eleições, mas daí não decorre que sua origem seja de fato lícita
Não são poucos os políticos que, vendo-se no centro de um escândalo de corrupção e tornando-se suspeitos de ter embolsado dinheiro de forma ilícita, se defendem com uma expressão bastante comum em episódios dessa natureza: "Todos os recursos dizem respeito a doações eleitorais, feitas legalmente e com o aval da Justiça".
Com pequenas variações, a frase já começa a ser empregada --e ainda será repetida-- por ocasião dos inquéritos acerca do esquema de desvios bilionários na Petrobras. O enunciado é muito útil para os investigados; tem a aparência de um álibi firme e, no mais das vezes, poderá ser comprovado.
Daí não decorre, contudo, que nada tenha ocorrido por baixo do pano. A julgar pelo que o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa disse em um de seus depoimentos na Polícia Federal do Paraná, a ideia de que existe contribuição para campanhas não passa de uma "grande falácia".
De acordo com Costa, o financiamento eleitoral constitui, na verdade, um empréstimo a ser cobrado no futuro, "a juros altos", de quem vier a ocupar cargos públicos. O acerto entre patrocinador e beneficiário pode se dar de várias maneiras; uma delas, talvez a mais frequente, vem sendo exposta pela Operação Lava Jato.
Nesse esquema, a "doação eleitoral" surge como mero disfarce para o pagamento de propina. Esta, por sua vez, é o preço do agente público para facilitar contratos de empresas privadas com o Estado, seja fazendo vista grossa a conluios entre concorrentes, seja direcionando licitações --em qualquer hipótese, o erário sai perdendo.
O prejuízo imposto aos cofres públicos representa o lucro indevido das companhias, que enfim se veem recompensadas pelo adiantamento que fizeram. Uma mão lava a outra, como se vê, e todos os envolvidos saem ganhando.
Além de agentes e empresas diretamente implicados na falcatrua, também partidos se beneficiavam dos desfalques. Costa é assertivo: "Toda indicação política no país para os cargos de diretoria pressupõe que o indicado propicie facilidades ao grupo político que o indicou, realizando o desvio de recursos de obras e contratos firmados".
Os inquéritos, assim, não precisam necessariamente destrinchar as doações eleitorais. Nenhuma conclusão a que se chegar com relação a elas explicará muito sobre o esquema de corrupção --até porque não é impossível, embora improvável, que um político de fato desconhecesse as negociações por trás das verbas que recebeu.
Justamente por isso, tudo o que os investigados mais querem neste momento é desviar as atenções para o financiamento das campanhas. Folha, 11.03.2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Políticos de aluguel

BERNARDO MELLO FRANCO

BRASÍLIA - Às vésperas das eleições britânicas, uma reportagem deixou em maus lençóis os dois partidos que se revezam no governo de Sua Majestade desde 1922. Jornalistas do diário "Daily Telegraph" e da emissora Channel 4 procuraram parlamentares conservadores e trabalhistas com uma proposta indecorosa.
Eles se identificaram como representantes de uma empresa chinesa em busca de ajuda para expandir os negócios no Reino Unido. Os repórteres frisaram que a companhia estava "cheia de dinheiro" e precisava de aliados "influentes" no poder.
O discurso seduziu dois medalhões que já exerceram o cargo de ministro das Relações Exteriores: o conservador Malcolm Rifkind e o trabalhista Jack Straw. Eles se animaram tanto que toparam o convite sem sequer checar se a tal empresa existia --e tudo era fictício, do nome à suposta sede em Hong Kong.
Uma câmera escondida flagrou os dois políticos negociando o cachê e explicando como poderiam usar o mandato para favorecer clientes.
Rifkind prometeu obter informações de ministros e marcar reuniões com embaixadores. "Isso abre canais de acesso muito úteis", gabou-se. Straw disse atuar "abaixo do radar" e contou ter forçado a mudança de uma norma da União Europeia para beneficiar um contratante.
Os dois foram suspensos de seus partidos após a publicação da reportagem, no domingo. O Channel 4 exibiria um programa especial sobre o caso na noite de segunda, com o título de "Políticos de aluguel".
Em todo o mundo, há empresários e parlamentares dispostos a negociar à margem da lei. A diferença não está nas virtudes dos indivíduos de cada país, e sim na eficácia das instituições para puni-los, como deve acontecer no Reino Unido.
No Brasil, a prisão de empreiteiros acusados de corrupção foi uma boa surpresa. Mas o sucesso da Lava Jato ainda depende de seus efeitos no outro lado do balcão: o dos políticos que alugaram seus mandatos. Folha, 24.02.2015.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Política virou mundo à parte

CLÓVIS ROSSI

Hoje em dia, não cabe pôr em uma mesma frase "mundo político" e "bem comum". São antônimos
A pesquisa Datafolha publicada nesta segunda-feira (9), sobre a baixíssima adesão aos partidos políticos, põe ciência numa antiga constatação empírica: o mundo político foi se transformando, paulatinamente, em um universo à parte, que gira em torno apenas de seus interesses, não do bem comum.
É até constrangedor usar "mundo político" e "bem comum" numa mesma frase. Tornaram-se antônimos.
O desamor aos partidos não é, diga-se, um fenômeno exclusivamente brasileiro nem algo recente.
O Latinobarômetro, a melhor medida do humor latino-americano, capta a desconfiança já faz alguns anos. No mais recente (2013, mas divulgado em 2014), a frase "o país é governado para o benefício de todos" era aprovada por menos de 30%, na média do subcontinente.
No Brasil, era pior: menos de 20% achavam que o bem comum estava na pauta dos governantes.
Tampouco é um fenômeno exclusivamente latino-americano. A rigor, é mundial.
No mesmo dia em que o Datafolha mostrava o tobogã para baixo em que mergulharam Dilma Rousseff, Geraldo Alckmin e Fernando Haddad, o jornal espanhol "El País" publicava pesquisa em que o partido mais votado é um certo Podemos.
O Podemos é filho do chamado movimento dos indignados, que sacudiu o país faz uns dois anos. Como os dois partidos que dominam a política espanhola desde a redemocratização, em 1977, não deram bola para os "indignados", estes criaram seu próprio partido.
Lá também os partidos tradicionais sofrem erosão idêntica à dos brasileiros: o conservador Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol tiveram, somados, 73% dos votos na mais recente eleição geral (2011). Agora, na pesquisa que o Podemos lidera, os dois juntos ficam com apenas 46%.
No Reino Unido, os partidos nanicos tiveram 6% dos votos na mais recente eleição geral (2010); agora, as pesquisas lhes dão quatro vezes mais (25%).
Para o colunista Antonio Navalón, do "El País", o mundo vive o fim de um sistema: "Se não se aceitar que estamos no fim de um sistema, não se pode entender nem [Alexis] Tsipras na Grécia nem o Podemos (...) nem as dificuldades --caso Petrobras, entre outras-- que tem Dilma Rousseff no Brasil", escreve.
Navalón não deixa claro a que sistema se refere, mas parece óbvio que se trata do modelo econômico predominante no planeta, chamado neoliberal. Não deixa de ser curioso que as dificuldades de Dilma Rousseff entrem no rolo geral exatamente quando ela muda o rumo, do intervencionismo na economia para a mais tradicional ortodoxia.
Francamente, não sei se estamos mesmo na iminência do fim de um ciclo em matéria econômica. O capitalismo tem formidável capacidade de se reinventar.
Mas o mundo político, este sim, demonstra invencível incapacidade de se reinventar e voltar a ser (se é que o foi algum dia) um instrumento para o benefício de todos e não apenas de alguns. Aí é que mora o perigo, pois fica aberto o campo para aventureiros, de que o Brasil, aliás, já foi vítima mais de uma vez (nomes a seu critério). Folha, 10.02.2015

Todos iguais

Pesquisa Datafolha mostra que 71% dos brasileiros não têm partido de preferência, um recorde; número de simpatizantes do PT desaba
Na sexta-feira (6), num evento organizado em Belo Horizonte para comemorar os 35 anos do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lamentou que a legenda venha se tornando "um partido igual aos outros", deixando de ser uma agremiação de base "para se transformar num partido de gabinete".
Na mesma ocasião, a presidente Dilma Rousseff afirmou, sem citar nomes, que as pessoas devem pagar por seus erros, mas ressalvou a legenda: "Devemos preservar a história deste partido".
Falava sobre o escândalo na Petrobras, assunto que também preocupa José Dirceu. Condenado no julgamento do mensalão e cumprindo prisão domiciliar, o ex-ministro tem dito a amigos que, sem uma reação, a Operação Lava Jato pode vir a representar a "pá de cal" na imagem da agremiação.
Pesquisa Datafolha publicada nesta segunda-feira (9) mostrou o quanto os três estão certos. A fatia dos entrevistados que declara preferência pelo PT encolheu de 22%, em dezembro, para 12% agora.
Ainda se trata da legenda com mais simpatizantes, mas já não se distancia tanto de PSDB (5%) e PMDB (4%). Em seu melhor momento, registrado em abril de 2012, o PT tinha o apoio de 31% dos brasileiros, no mínimo 27 pontos a mais do que qualquer outro partido.
Desde que o Datafolha faz esse levantamento, jamais houve queda tão acentuada na predileção por uma legenda. Quanto ao PT, seu novo patamar o deixa em posição mais desconfortável do que a vista na esteira do mensalão, quando caiu a 15% das preferências.
Talvez mais simbólico, o percentual atual devolve a agremiação de Lula e Dilma ao nível de dezembro de 1998. Na pesquisa seguinte, de fevereiro de 1999, pela primeira vez o PT conquistaria mais adeptos do que o PMDB (15% a 12%).
Beneficiando-se da perda de popularidade do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no segundo mandato, o PT consolidou-se como oposição e logo seria o único a sempre ostentar dois dígitos nos levantamentos sobre opção partidária.
Esse patrimônio, que parecia bastante sólido após ter resistido ao mensalão, dá sinais de que vai ruir. O fracasso na economia e a percepção do estelionato eleitoral, aliados aos bilionários desvios na Petrobras, levam cada vez menos gente a se identificar com o Partido dos Trabalhadores.
Após 12 anos no poder, a agremiação caminha para se igualar às demais também na baixíssima capacidade de representar o eleitor --hoje, 71% dos brasileiros não têm legenda de preferência, um recorde nas medições do Datafolha.
Na nossa democracia, a classe política mostra-se cada vez mais disposta a agir em nome dos próprios interesses, e não surpreende que a maior apreensão dos líderes petistas neste momento seja com a imagem e a história; simplesmente não lhes ocorre que deveriam se preocupar antes com as atitudes de seus correligionários.
Folha, 10.02.2015.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

71% dos brasileiros não têm partido de preferência

Índice era de 61% em dezembro; nas manifestações de junho, chegou a 64%
Parcela que diz ter o PT como sigla favorita caiu de 22% para 12%; no mensalão, nível mais baixo foi de 15%
ÉRICA FRAGADE SÃO PAULO
A percepção de aumento da corrupção combinada à expectativa de piora nas condições de vida deflagrou uma crise de representação no país, evidenciada pelo aumento na rejeição aos partidos políticos.
A fatia dos brasileiros que dizem não ter um partido de preferência saltou de 61% em dezembro de 2014 para 71% em janeiro deste ano. Trata-se do maior patamar desde o início da série histórica do Datafolha para essa pergunta, em agosto de 1989.
A rejeição à representação política já tinha dado um salto em junho de 2013 --época dos protestos que pararam o país--, quando passou de 55% para 64%. Desde então, oscilou próxima a esse patamar, mesmo durante a eleição presidencial de 2014.
O aumento registrado agora foi silencioso, sem novas manifestações abrangentes de rua, mas confirma o desalento da população brasileira. Isso se refletiu nas respostas a outras perguntas do Datafolha, como as expectativas em relação ao futuro da economia e ao da própria situação financeira de cada um.
Todas indicaram um crescimento do pessimismo. O novo sentimento contrasta com o verificado até o fim do ano passado.
Três meses e meio após a reeleição da presidente Dilma Rousseff, o apoio da população ao PT recuou para o patamar de dezembro de 1998, pouco antes de o partido ter conseguido tirar do PMDB a preferência do eleitorado. Isso acabou pavimentando o caminho para a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, em sua terceira tentativa.
Entre dezembro de 2014 e janeiro deste ano, a parcela dos eleitores que dizem, em resposta espontânea, ter o PT como seu partido favorito caiu de 22% para 12%. Na época do mensalão, o nível mais baixo tinha sido de 15%.
SEM BENEFICIÁRIOS
A queda de apoio ao partido não beneficiou as legendas rivais. Principal sigla de oposição, o PSDB viu sua base de apoio ir de 7% para 5%. Algumas siglas pequenas oscilaram de 0% para 1%, mas o movimento tem sido pendular.
A dificuldade da oposição em capitalizar a desidratação do PT pode se explicar em parte porque, embora generalizado, o aumento do desalento em relação à sigla foi forte entre seu eleitorado mais fiel.
Na pesquisa de dezembro de 2014, entre os simpatizantes do PT, 71% consideravam o desempenho do governo ótimo ou bom.
Agora, esse índice é de 52%. Na via oposta, a fatia dos petistas que avaliam a administração atual como ruim ou péssima quadruplicou, passando de 3% para 12%.
A queda na avaliação de Dilma foi intensa entre a população de renda baixa e pouca escolaridade.
Embora permaneça em patamar mais elevado do que nos demais estratos, o recuo da aprovação entre os brasileiros que têm o ensino fundamental despencou de 54% para 31%.
No recorte dos que têm renda familiar mensal de até dois salários mínimos, a queda foi de 50% para 27%.
Regionalmente, o recuo foi mais marcante no Nordeste, com queda na aprovação de 53% para 29%.
Com isso, o Norte, onde a queda foi de 51% para 34%, ultrapassou o Nordeste como região onde o PT conta com seu maior apoio.
Os dados foram levantados pelo Datafolha em pesquisa realizada entre os dias 3 e 5 de fevereiro, com base em 4.000 entrevistas feitas em 188 municípios.
A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Folha, 09.02.2015.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Movimento Cidadão Comum (MCC) - Saúde

Podemos, mas queremos?

RICARDO MELO

A revolta europeia é um alerta para quem diz falar em nome do povo, mas caminha no sentido oposto
Os números, como sempre, são conflitantes. Segundo a polícia, foram 100 mil pessoas. Os organizadores da manifestação contaram 300 mil. O jornal "El País", valendo-se de critérios próprios de medição, calculou em mais de 153 mil o número de presentes ao ato do Podemos em Madri no sábado (31). A capital espanhola tem cerca de 3,3 milhões de habitantes.
A gigantesca manifestação contra as políticas de austeridade na Europa foi vitaminada pela vitória estrondosa do partido Syriza na Grécia. Assim como este, o Podemos reúne um pouco de tudo: ex-militantes de partidos tradicionais, manifestantes indignados, jovens desiludidos, desempregados e muita gente que podia nem estar aí, mas insiste em pensar no futuro.
Segundo a repórter Luisa Belchior Moskovics, desta Folha, os "manifestantes eram sobretudo adultos e idosos". Uma aposentada de 66 anos, Ascensión Fernández, contou à jornalista: "Ainda temos nossa aposentadoria, mas isso não está mais garantido a nossos filhos, e por isso viemos. Não queremos mais ser empregados da Merkel". [Angela Merkel, chanceler alemã e símbolo da política de arrocho, para os outros, claro, que devasta a Europa.]
Parece longe, do outro lado do oceano. Falso. O fenômeno tem tudo a ver com o Brasil. Tanto o Syriza como o Podemos surgiram da insatisfação de povos cansados do jogo político tradicional, da coreografia repetitiva de eleições para presidente de Câmara, da subserviência de legendas autoproclamadas populares, mas que na prática curvam-se aos status quo da plutocracia e da ciranda financeira.
Guardadas certas proporções, o momento histórico e diferenças sociais, foi mais ou menos um movimento parecido que criou o PT brasileiro. O PT, hoje no poder, nasceu do encontro de militantes de origens variadas, de católicos a ultraesquerdistas, passando por uma maioria revoltada com "o que está aí".
Detalhe essencial: a origem não confere um selo de qualidade vitalícia ao rebento. Exemplos não faltam. Desde a traição dos velhos partidos social-democratas ao papel destruidor exercido pelo stalinismo quanto à esperança de um mundo solidário, mais justo e menos desigual.
Nada disso trava a história. De tempos em tempos, o cenário é sacudido pela ação da esmagadora maioria insatisfeita com o poder do 1% sobre o restante. De uma ou de outra forma, é isso que está por trás de eventos como a queda do Muro de Berlim, a Primavera Árabe e a resistência dos povos europeus ao plano de terra arrasada proposto pela troika.
A questão é o futuro. Uma vez no poder, a expressão política destes movimentos esbarra em carências doutrinárias, indefinição programática e rendição ao dinheiro fácil e a benesses do poder. O PT, no Brasil, sofre este risco. A proliferação de movimentos sociais descolados do partido é impressionante. Grupos de sem-teto, articulações culturais fora do eixo e até sem eixo, mídias alternativas --há uma efervescência correndo por fora e que de repente explode como em junho de 2013.
Syriza, Podemos e outros tantos são exemplos de vida pulsante pelo mundo. A incógnita, mais uma vez, é como essa ebulição será orientada. Curvar-se ao manual da austeridade, ajuste fiscal e metas de superavit é o caminho mais fácil para a desmoralização. Veja-se o fiasco dos partidos de "esquerda" tradicional em todas as eleições europeias. Lev Davidovitch Bronstein escreveu que a crise da humanidade é a crise da direção revolucionária. Diante dos fatos, impossível não lhe dar razão. Folha, 02.02.2015.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Tributos e dificuldades da indústria

Volto hoje ao tema de que já tratei em algumas colunas, mas que continua presente como nunca: as dificuldades da indústria.
Uma das maiores dificuldades que o setor enfrenta é o elevadíssimo custo de observância da legislação tributária. O custo de observância resulta da enorme complexidade dos impostos indiretos, seja os da União, PIS e Cofins, mas principalmente o ICMS, que é estadual.
Cada Estado tem a sua lei. Há inúmeras alíquotas diferentes, regimes especiais, e as diversas secretarias estaduais da Fazenda emitem decretos e instruções normativas alterando algum aspecto do seu ICMS quase que diariamente.
Como José Roberto Mendonça de Barros tem afirmado, o custo de observância desempenha hoje para a eficiência da economia o papel que a inflação desempenhava nos anos 1990. Naquela oportunidade de, qualquer empresa bem administrada em sua atividade precípua poderia quebrar se não tivesse uma tesouraria muito competente para gerir o caixa.
Adicionalmente, o setor bancário crescia. Inúmeras agências eram abertas. A atividade do sistema bancário não era intermediar poupadores e investidores e, com isso, ajudar no financiamento do crescimento econômico.
Naquela época, a atividade do sistema bancário era ajudar o setor privado não bancário a conviver com a inflação. Ofertavam-se serviços de meios de pagamento –por exemplo, conta remunerada com saque automático– que somente faziam sentido por causa da inflação.
Ou seja, um monte de recursos reais –prédios, trabalhadores e equipamentos– era mobilizado para desempenhar atividade que seria desnecessária se a inflação fosse baixa. Todos esses recursos poderiam ser aplicados em alguma atividade mais produtiva para a sociedade se a inflação fosse baixa.
Hoje, em vez de uma tesouraria hipertrofiada, as empresas precisam ter um departamento contábil enorme. No limite, se a empresa vende seu produto para cada Estado da Federação, precisa ter um contador para cada um dos Estados de sorte a observar as alterações dos normativos de cada um deles!
Adicionalmente, a enorme complexidade cria espaço sem fim para litígios entre as Receitas Federal e estaduais e as empresas. Abrem-se inúmeros escritórios de advocacia tributarista para auxiliar as empresas em seus litígios, que forçosamente ocorrerão. Em vez de hipertrofia bancária, temos a hipertrofia dos escritórios tributaristas.
Evidentemente, essas dificuldades são arcadas por todo o setor produtivo, e não somente pela indústria. No entanto, a indústria, principalmente a de transformação, sofre mais pois é o setor cujas cadeias produtivas são mais longas. A complexidade tributária afeta toda a rede de fornecedores e clientes das diversas empresas.
Assim, se o novo governo conseguisse negociar no Congresso Nacional uma reforma tributária que simplificasse os impostos indiretos e, consequentemente, reduzisse muito o custo de observância, haveria algum alívio da sofrida indústria de transformação, setor que tem tido o pior desempenho em seguida à crise e que é o mais afetado pelo desafio chinês.
Os ingredientes para a reforma tributária são bem conhecidos: harmonização das diversas legislações estaduais de ICMS; redução ao mínimo necessário dos regimes especiais dos vários impostos, incluindo os federais; cobrança do imposto no destino em vez de na origem etc. A difusão do uso da nota fiscal eletrônica reduz em muito as dificuldades técnicas da reforma.
No primeiro mandato da presidente Dilma, o Congresso Nacional, com a liderança do atual ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, à época secretário-executivo do ministro Guido Mantega na Fazenda, chegou muito perto de aprovar a reforma tributária.
Oxalá no período de lua de mel do primeiro ano do segundo mandato a presidente consiga aprovar a reforma tributária e essa seja, como na analogia no início desta coluna, o Plano Real de Dilma. Folha, 25.01.2015.
Samuel de Abreu Pessôa é formado em física e doutor em economia pela USP e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Dilma, ouça a receita Renzi

CLÓVIS ROSSI

De universos diferentes, o primeiro-ministro italiano e a presidente Dilma têm concordâncias e divergências
DAVOS - Ouvir o jovem Matteo Renzi, premiê italiano, 40 anos, remete inexoravelmente à presidente Dilma Rousseff.
É quando ele diz que "a transformação dos riscos em oportunidade é a qualidade da liderança" e que, por importante que seja a economia, "sem liderança política, nós não estaremos em condições de investir em um mundo diferente".
Quando é que pensei em Dilma ao ouvir Renzi no Fórum de Davos? Primeiro, no ponto em que ele diz que transformar riscos em oportunidade é qualidade de liderança.
Aparentemente, Dilma sentiu que havia riscos na condução da economia como vinha sendo feita e, por isso, resolveu criar uma oportunidade com uma guinada mal digerida em seu próprio partido.
O problema é que a presidente escondeu-se no palácio e não aparece em público para exibir a liderança política que o premiê italiano reclama.
Liderança que vá além da economia e aponte rumos em todos os diferentes campos em que o Brasil enfrenta dificuldades, todas elas arquiconhecidas e diagnosticadas.
Renzi, ao contrário, mostra-se hiperativo, com uma série de propostas de reformas internas e com um discurso para mudar também a política predominante na Europa.
"Eu luto para mudar a direção em que vai a Europa [centrada na austeridade], mas sei que minha função é fazer as reformas no meu país", diz.
Parêntesis: uma das reformas de Renzi, a da legislação trabalhista, provocou forte reação contrária dos poderosos sindicatos italianos, a exemplo do que ocorreu com Dilma quando da limitação de benefícios aos trabalhadores.
A diferença é que a grita, no Brasil, teve como alvo não a presidente, mas seu novo ministro da Fazenda. Não assim na Itália, em que Renzi era --e continua sendo-- o alvo.
Fecha parêntesis e voltemos às comparações: ao contrário de Dilma, Renzi exibe uma ambição que soa até presunçosa.
Diz que, na Itália, até que ele assumisse, em fevereiro passado, o objetivo de cada primeiro-ministro era apenas o de "permanecer no cargo".
Ele quer o cargo para "mudar a Itália". Promete até quatro anos de mudanças, no pressuposto de que ficará até 2018, quando se encerra seu período, sempre e quando não seja derrubado antes por perder a maioria (coisa que, na Itália, ocorre com tremenda frequência).
Diferenças apontadas, voltemos às coincidências: Dilma e Renzi são fanáticos pelo crescimento, acima de qualquer outra coisa.
"O primeiro desafio de hoje é voltar ao crescimento", diz ele, em frase que vale para a Itália, sim, mas para toda a Europa também e igualmente para o Brasil.
Renzi defende algo que no Brasil se chamaria de truques orçamentários: acha que investir em projetos de infraestrutura importantes para a Europa não deveria ser computado no pacto de estabilidade (o que estabelece um limite máximo de deficit público de 3% do PIB para cada país europeu).
Por muito jovem que seja, Renzi promete que esses quatro anos de mudanças serão seu último emprego como político. No Brasil, ninguém faz idêntica promessa. Folha, 22.01.2015.