quarta-feira, 26 de novembro de 2014

OPERAÇÃO PÚNICA: O BLOCO CENTRAL DA CORRUPÇÃO ESPANHOLA



(Fonte: El País)
Desencadeada por uma investigação na Suiça sobre branqueamento de capitais, a conta aí sedeada do ex-conselheiro da Comunidade de Madrid (PP) Francisco Granados permitiu identificar uma vasta trama batizada pelo nome de Operación Púnica. A trama é do tipo conhecido: amizades empresariais, concessões de obras de favor realizadas por autarcas, comissões envolvidas e branqueamento sofisticado dessas comissões envolvendo as próprias empresas apoiadas, empresas artificiais e de intermediação. Como não podia deixar de ser, o ADN do PP está largamente representado na rede estabelecida, mas a companhia do PSOE faz-se notar: secretário técnico do turismo de Múrcia, ex-alcalde de Cartagena e um município (Parla) da Comunidade de Madrid. Não é tão representativa a presença de detidos do PSOE como a do PP, mas a verdade é que estavam na rede.
Os montantes de obras ilegalmente atribuídas (cerca de 250 milhões de euros) não apontam para uma operação gigantesca do ponto de vista financeiro, pelo que o número de 51 detidos sugere provavelmente a presença de arraia miúda, não estando nós ainda perante provavelmente o coração do bloco central da corrupção. É verdade que não conhecemos o montante global das comissões ilegais envolvidas, número que nos teria permitido calcular o efeito alavanca (como agora se diz) da tramoia.
Em simultâneo descobriu-se ontem que o PP tinha uma caixa b e que o partido tinha ilegalmente adquirido ações de um órgão de comunicação chamado Libertad Digital. A questão traumática dos tesoureiros do PP tende a transformar-se numa espécie de característica estrutural do partido. O eternamente surpreendido Rajoy recorreu ao pedido de perdão no Senado espanhol para dizer qualquer coisa sobre o assunto, o que começa a ser entendido como uma solução fácil e de demasiado rápida mobilização.
Pela frequência com que os pedidos de perdão se têm sucedido (a confissão alivia na cultura do PP), é provável que nos próximos tempos os infelizes ou descarados tenham de optar por sujeições mais gravosas (percorrer de joelhos o Valle de los Caídos, sujeitar-se a uma tomatada e outras que a imaginação certamente doentia do leitor se encarregará de propor ao infeliz).
http://interesseseaccao.blogspot.com.br/2014/10/operacao-punica-o-bloco-central-da.html

Engenharia de transição


Uma das trocas de governo mais exitosas foi a de 2002, de tucanos para petistas; agora a realidade é outra
O estudo da passagem de poder de um governo para outro é profissão antiga.
Entre o Édipo de Sófocles e o rei Lear de Shakespeare, passando pelo "Livro dos Reis" da Bíblia, há 2.000 anos de sabedoria. De lá para cá, o conhecimento acumulado cresceu de modo exponencial.
Quem se interessa pelo tema apreciará o magistral "The Passage of Power", escrito por Robert Caro (US$ 12,40 em formato e-book).
É a história das manobras de Lyndon B. Johnson para assumir o controle da Casa Branca após o assassinato de John F. Kennedy, em 1963, e, em seguida, eleger-se presidente pelo voto popular. Os roteiristas do seriado "House of Cards" usaram o material à exaustão.
Embora não exista receita para uma sucessão perfeita, três áreas merecem destaque na literatura especializada.
Promessas de campanha -- Poucos políticos conseguem entregar o que prometem durante os meses de campanha. Por isso, a maioria deles usa a transição para ajustar as expectativas do eleitor para baixo. Nesse processo, vence quem consegue oferecer uma versão diluída da promessa original. Quem se elege, mas faz o exato oposto do que prometeu, paga custo alto.
Gestão da equipe -- Há três erros mais comuns. Primeiro, indicar um ministro, mas não nomeá-lo, expondo-o ao ataque de predadores que o fazem dessangrar em praça pública. Segundo, alimentar dúvidas sobre a divisão de tarefas entre os ministros da nova equipe, fomentando entre eles não uma competição saudável, mas uma cizânia paralisante. O terceiro equívoco é apresentar aos novos ministros planos elaborados por seus antecessores.
Juntos, esses problemas reduzem a agilidade da equipe do presidente eleito e abrem as comportas para uma enxurrada de vazamentos à imprensa.
Relações internacionais - O poder de um presidente eleito vem do mandato popular. No entanto, nada agrega mais autoridade ao projeto político consagrado nas urnas do que o reconhecimento por terceiros países. Por isso, presidentes eleitos sempre buscam explorar os rituais da diplomacia. Ao viajar ou encontrar outros chefes de governo durante o período de transição, consolidam sua força em casa.
Na história da República brasileira, houve muitas transições bem administradas.
Uma das mais exitosas foi a coreografada troca de comando entre tucanos e petistas em 2002.
Agora, em 2014, a realidade é outra.
Nesses primeiros 31 dias da transição que corre, a equipe presidencial tropeçou na hora de anunciar a equipe econômica.
Deixou circular a imagem melancólica da presidente reeleita no encontro do G20, almoçando em silêncio, quase sozinha, não fosse a presença cabisbaixa de Putin.
Nos 35 dias que restam até o início do novo mandato, a equipe da presidente faria bem em tomar nota das lições do passado.
A engenharia desta transição importa, porque o novo governo vai começar com a vitória mais apertada da série histórica, e o mal-estar econômico e social não parece arrefecer. MATIAS SPEKTOR
Folha, 26.11.2014.
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terça-feira, 18 de novembro de 2014

CLÓVIS ROSSI: G20 Brisbane 2014, sorria, o mundo está de olho

O mais importante na cúpula do G20 é o que não está explícito no texto final: a governança agora é global
O resultado mais importante da cúpula do G20, recém-encerrada em Brisbane, não aparece explicitamente no caudaloso documento final. Ou melhor, aparece em termos econômico-burocráticos, sem a dimensão política que de fato tem.
O que se prometeu criar em Brisbane é, para todos os efeitos práticos, o primeiro movimento de globalização da gestão pública.
Ou, posto de outra forma, os governos do G20, o Brasil entre eles, passam a prestar contas não apenas a seus próprios Congressos e à sua própria opinião pública, mas também a seus pares.
Explico melhor: o G20 lançou um plano de ação que promete fazer a economia global crescer 2,1 ponto percentual acima do que o Fundo Monetário Internacional previa no final de 2013.
Em números reais: a previsão do FMI era de crescimento de 2,9%. Logo, o mundo terá que crescer 5%, até 2018, para cumprir as metas fixadas em Brisbane.
A novidade é que, uma vez por ano, o FMI e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico farão uma avaliação do andamento das iniciativas apresentadas em Brisbane pelos países-membros do G20. Aí é que entra essa globalização da gestão pública, ao menos parcialmente.
É verdade que não está prevista a possibilidade de sanções em caso de não cumprimento das metas. Mas nenhum governo há de querer passar a vergonha de ser reprovado na escolinha FMI/OCDE.
Para o Brasil, há um problema adicional: o FMI não é tido como legítimo em seu atual formato.
Ou seja, sem uma reforma das cotas (e, por extensão, do poder de cada país-membro), o Brasil ficará na estranha situação de ser monitorado por uma instituição que acha que não o representa efetivamente.
No caso da OCDE, é um pouco a mesma coisa: reúne as 34 economias mais avançadas do planeta, e o Brasil está entre elas. Mas tem se recusado, sistematicamente, governo após governo, a aderir ao grupo, alegando que impõe políticas ortodoxas que o Brasil nem sempre está disposto a adotar.
Um segundo ponto em que a gestão se tornará global é em infraestrutura, notória carência brasileira.
Foi criado um Núcleo Global de Infraestrutura, provisório (durará quatro anos), com sede em Sydney, Austrália. Explica o projeto Mark Birrell, responsável pela agência australiana de infraestrutura:
"Durante demasiado tempo, houve uma carência de dados e de estudo de casos globais comparáveis sobre concorrências e financiamento de infraestrutura".
Com o novo Núcleo, as concorrências da Petrobras, por exemplo, ficariam em tese expostas internacionalmente, se é que o governo brasileiro vai listá-las entre as que apresentará ao novo organismo.
Se inclui-las, ou diminui a corrupção ou a corrupção também se globaliza (empreiteiras estão envolvidas habitualmente em todos os escândalos ocorridos em diferentes países).Para os nacionalistas de plantão, tudo isso deve soar como heresia, ainda mais por envolver o FMI, antiga besta-fera da esquerda. Mas o mundo é assim, cada vez mais interligado, gostemos ou não. Folha, 18.11.2014.
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quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Os safanões e a autoridade

CONTARDO CALLIGARIS

Como nasce a autoridade? Existe uma autoridade que não comece com o safanão ou a ameaça do safanão?
Na segunda passada, foram divulgados os resultados de uma pesquisa que a Fundação Getúlio Vargas realizou para o Fórum de Segurança Pública. Nada surpreendente: 81% dos brasileiros concordam com a ideia de que, no Brasil, é fácil desobedecer às leis, e 57% acreditam que há poucos motivos para segui-las.
Há diferenças segundo a renda e os Estados, mas nada que altere a sensação de que existe, em geral, uma desconfiança do cidadão em relação à Justiça, à polícia e à autoridade pública.
Alguns dirão que ainda é um efeito da exclusão social: por que eu seguiria as regras de um clube que não me deixa frequentar sua sede? Outros, para explicar essa desconfiança, colocarão o acento na impunidade (embora talvez ela seja menos manifesta do que no passado).
Entendo. Às vezes me encontro numa fila infinita de carros, e um espertinho ultrapassa todo mundo pelo acostamento. Rezo para que, lá na frente, meus colegas de fila não deixem ele voltar para a pista --ou, então, para que, na próxima curva, haja um policial. Mas acontece o oposto: aos poucos, meus colegas de fila começam a seguir o exemplo do espertinho. Logo, o acostamento se torna mais uma pista, engarrafada e parada como as outras --com sorte, nenhuma ambulância precisará passar por lá.
Será que eu respeito a lei porque sou "do bem" ou porque me falta coragem, mesmo na óbvia ausência de fiscalização? Será que nós, os que ficamos na fila, somos apenas otários?
Enfim, a pesquisa da FGV levanta uma questão clássica e cotidiana: qual é o fundamento da autoridade da lei? Se você duvida que seja uma questão cotidiana, pergunte para qualquer jovem pai, quando ele é acusado pela mulher de não saber "colocar limites" nos filhos (essa expressão volta, aliás, como se todas as jovens mães tivessem lido o mesmo livro).
Subentendida nessas acusações está a ideia de que o marido, se não conseguir controlar as crianças, não deve ser homem de verdade. Mas, obviamente, a maioria das mães não está pedindo que o marido e pai conquiste a obediência das crianças à força de safanões e porradas. O que se pede é que alguém imponha uma autoridade "simbólica", ou seja, que alguém faça que as crianças obedeçam aos pais --por ele ser o pai e por ela ser a mãe. Cá entre nós: se você leu essa última frase sem rir (ou, no mínimo, sorrir), é porque você não tem filhos.
Em suma, é uma pergunta cotidiana: qual é a origem da autoridade? Existe uma autoridade que não comece com o safanão ou a ameaça do safanão?
Há muitas respostas possíveis a essa pergunta. Aponto dois caminhos divergentes.
Primeira resposta: não. Em última instância, a violência ou a ameaça da violência real seria a única fonte de qualquer autoridade. Claro, o mistério é que a autoridade sustentada pela violência real deve se transformar, aos poucos, em autoridade simbólica. Se a autoridade continuar fundada apenas na violência, o que acontecerá, por exemplo, quando os filhos crescerem e se tornarem mais fortes do que os pais? Os pais vão apanhar?
Outra resposta: sim, a autoridade pode se fundar sem violência e sem ameaça. Por exemplo, ela pode ser o efeito de uma dívida: estamos em dívida com os que nos oferecem amor e cuidados, e portanto obedecemos, escolhemos respeitá-los. Isso valeria tanto para os pais provedores quanto para o Estado, do qual seguiríamos as leis na medida em que ele nos ampara. A autoridade, em suma, seria fundada na gratidão. Os partidários da violência como origem da autoridade comentarão (com ironia) que para eles também a gratidão funda a autoridade: por exemplo, cada um reconhece a autoridade de quem poupa sua vida.
Enfim, uma famosa observação de Max Weber: existe Estado quando só UMA autoridade pode exercer a violência. Se alguém estiver exposto a várias violências de origens diferentes e conflitantes, nenhuma delas tem chance de se transformar em autoridade reconhecida espontaneamente.
Acabo de ler um artigo de Joanna Wheeler ("Accord", nº 25) sobre autoridade e cidadania em várias favelas cariocas (migre.me/mN0Gq). Entre as razões pela falta de uma autoridade simbólica, Wheeler aponta, justamente, a variedade das fontes da violência (tráfico, milícia, polícia) e, portanto, a dificuldade de os cidadãos enxergarem uma legitimidade qualquer. Folha, 14.11.2014

No Brasil, esquerda joga a democracia conforme as regras



Participante de fórum no Brasil, fundador de site de El Salvador afirma que governo de ex-guerrilheiros se envolveu em corrupção
SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULOCom apenas um tiro no peito, o arcebispo Óscar Romero caiu morto no altar, no meio de uma missa, em 24 de março de 1980.
El Salvador vivia o começo de uma guerra civil de 12 anos, que deixou 80 mil mortos. Somente após 30 anos, o mistério seria solucionado.
"Assim Matamos o Monsenhor Romero", do jornalista Carlos Dada, revelou que os assassinos do religioso, conhecido por denunciar crimes contra direitos humanos, eram membros de uma espécie de "esquadrão da morte".
O furo surgiu na modesta internet local e deu projeção internacional a um site então pouco conhecido, El Faro.
De pequeno empreendimento no menor país da América Central, o El Faro virou referência em todo o continente, trazendo à tona bastidores da movimentação dos cartéis, da imigração ilegal e da violência entre gangues.
Dada, 44, um dos fundadores do site, é um dos convidados do Fórum Piauí de Jornalismo, que acontece no fim de semana (www.festivalpiaui.com.br) em São Paulo.
Leia trechos da entrevista, realizada por telefone.
Folha - El Faro fez sua primeira publicação em 1998. Qual era a ideia de vocês naquele momento?
Carlos Dada - Tínhamos passado por uma longa guerra e, durante todos aqueles anos, os jornais salvadorenhos não nos contavam nada. Sempre foi uma imprensa conservadora e corrupta.
Nos informávamos por meio de veículos dos EUA, da Europa e do México. Sentíamos necessidade de saber o que acontecia.
Como o site se paga? Como surgiram os patrocinadores?
No começo, fizemos com dinheiro do próprio bolso,mas aos poucos fomos atraindo diferentes patrocinadores.
Os apoios chegaram em boa hora, porque não era mais possível fazer o site em meio período. Tínhamos de ter jornalistas profissionais e oferecer dedicação integral.
No recém-lançado livro "Crecer a Golpes" (ed. Penguin), você dá uma visão muito pessimista do país nos anos pós-guerra civil. Por quê?
El Salvador está tomado pela corrupção, e não vejo espaço nem vontade política de fortalecer as instituições. Antes, havia uma esperança.
Quando a FMLN (Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional, ex-guerrilha de esquerda, hoje partido político) era oposição, acreditávamos que chegariam ao governo e construiriam um país melhor. Afinal, tinham lutado uma guerra para isso.
Só que eles alcançaram o governo, e o país continuou corrupto [a FMLN está no poder desde 2009]. Pior, eles se envolveram nisso também.
O PT (Partido dos Trabalhadores) é alvo dessa mesma crítica aqui. Pode-se comparar?
Creio que há linhas gerais parecidas, mas a decepção aqui foi maior. Nos anos Lula, a vida de milhões de brasileiros menos afortunados melhorou. Em El Salvador, não houve nem mesmo esse avanço no sentido de diminuir as diferenças sociais.
A guerra de gangues tornou-se um problema gravíssimo em El Salvador. Por que o problema chegou a esse ponto?
As gangues nasceram em Los Angeles, formadas por salvadorenhos que cresceram lá e foram deportados após a guerra (1979-1992).
Esses jovens chegaram a um país destruído pela guerra, com abundância de armas e com uma cultura de conflito já instalada. Era um terreno muito propício à violência.
Nenhum governo depois disso teve uma política eficiente contra as "maras". Todas as medidas tomadas foram com fins eleitorais, fadadas a não dar certo.
Como vê a relação de imprensa e governos atualmente na América Latina?
Creio que aqueles que têm governos que enfraqueceram as instituições, a Bolívia, a Venezuela, o Equador, a Argentina, colocam o jornalismo independente em risco.
Nesses países, começa a surgir o jornalismo militante, com o qual é impossível concordar. Mas também neles há quem faça bom jornalismo.
Já no Brasil, a esquerda joga as regras da democracia. Eu acho que os jornalistas reclamam muito, pois há liberdade de imprensa no país. Folha, 13.11.2014.
 


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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Um teste para a doutora: Renegociação das dívidas internas

Se Dilma quisesse mesmo fazer o 'dever de casa', veta-ria a reindexação das dívidas de Estados e municípios
Pelo andar da carruagem, a doutora Dilma sancionará o projeto aprovado há poucas semanas pelo Senado alterando a maneira de calcular as dívidas de Estados e municípios com a Viúva. É coisa de R$ 500 bilhões que deveriam ser devolvidos à União nos próximos 25 anos. O que o Congresso aprovou é uma farra. Sancioná-la significará substituir a Lei da Responsabilidade Fiscal, uma herança bendita do tucanato, pela prática maldita da irresponsabilidade fiscal.
No século passado Estados e municípios quebrados transferiram suas dívidas para a bolsa da Viúva e aceitaram um indexador para quitá-las. Agora, querem mudá-lo, para pagar menos. Com a nova metodologia, a União perderá R$ 59 bilhões de receita, R$ 1 bilhão em 2015. Isso num cenário em que, pela primeira vez desde que o Brasil voltou a ter moeda, o governo federal fechou um mês com deficit de R$ 15,7 bilhões. Mais: para melhorar sua contabilidade, o ex-ministro da Fazenda no exercício interino do cargo anuncia cortes nos programas de auxílio-desemprego, abono salarial e auxílio-doença.
Se a questão central fosse dar folga aos governadores e prefeitos, a solução já seria condenável, mas não se trata apenas disso. O Congresso já havia elevado o teto de endividamento permitido aos Estados e municípios. Era de 120% da receita líquida e passou a ser de 200%. Ou seja, quem deve e não quer cumprir o contratado está autorizado a dever mais.
A farra foi aprovada porque beneficia todos os devedores, mas há um elefante na sala. É a prefeitura petista de São Paulo, que herdou dívidas de R$ 62 bilhões de seus antecessores. Com a nova conta, passará a dever R$ 36 bilhões. A gracinha fará com que a União refresque as contas do mais poderoso município do país, abrindo mão de uma receita que é de todos. Com a novidade, São Paulo poderá tomar emprestados até R$ 4 bilhões.
Arrecadando menos, a União terá que equilibrar suas contas. Poderá cortar gastos ou buscar outras fontes de receita, precisamente o contrário daquilo que a doutora Dilma prometia durante a campanha.
A irresponsabilidade fiscal tem um componente político. Refrescando-se os devedores fatura-se imediatamente a simpatia de governadores e prefeitos, mandando-se o grosso da conta para as administrações federais vindouras. Esse foi um dos ingredientes da receita que levou o Brasil à "década perdida".
A "contabilidade criativa" produz dois tipos de vítimas. As primeiras são os Estados e municípios onde governadores e prefeitos evitaram dívidas ou quitaram honradamente seus compromissos. Fizeram papel de bobos. Depois virão os contribuintes. Eles pagarão à Viúva mais taxas e impostos, ou receberão menos serviços públicos. Em geral, acontecem as duas coisas. O comissário Fernando Haddad, que batalhou pelo ciclismo fiscal, está na Justiça lutando por um aumento do IPTU.
O comissário Miguel Rosseto acha que a aprovação do projeto pelo Senado foi uma "sinalização importante". Outros sinais também sugerem que a doutora Dilma sancionará a farra. Fará isso para satisfazer sua base pluripartidária e para irrigar a administração petista de São Paulo. Fala em fazer o "dever de casa", mas sempre poderá dizer que chegou atrasada ao dia da prova. Folha, 12.11.2014.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Como fica a Cultura?

RONALDO LEMOS

Com a troca ministerial, é hora de pressionar de novo o botão 'reset' das políticas culturais
Na década passada o Brasil viveu períodos de entusiasmo com a política cultural. Em um momento em que a produção e a circulação da cultura mudavam radicalmente por causa de internet, o país encarou o desafio desses novos temas. Isso despertou interesse internacional por uma visão brasileira da cultura, emergente àquela época.
Concordando ou não com o Ministério da Cultura da década passada, há ao menos de reconhecer que ele estava em sincronia com os grandes debates daquele período.
Essa sincronia foi perdida. O MinC que se conectava ao pulso das questões globais --e buscava uma visão própria para elas-- esvaneceu. Temas como a propriedade intelectual, a proteção à produção local, o impacto da democratização da tecnologia na base da pirâmide social, a concorrência com mídias novas e tradicionais, as assimetrias regulatórias foram sendo deixados de lado em prol de uma política focada na operação burocrática do dia a dia.
Com a troca ministerial, é hora de pressionar de novo o botão "reset" das políticas culturais. O mundo ficou ainda mais complexo. Por exemplo, a produção de conteúdo comercial para web é uma realidade, e o streaming (como o Netflix e os serviços musicais) expande-se no país.
Nesse contexto, vale observar as ações dos ministério de outros países. Um exemplo é o francês CNC (Centro Nacional do Cinema e da Imagem Animada), análogo à nossa Ancine. Só que, diferentemente dela, apoia novas formas de cultura.
No Brasil, se o "Porta dos Fundos" bater à porta da Ancine em busca de apoio, dará com os burros n'água. A Ancine só apoia cinema e TV. Para fazer conteúdo para web, desenvolver games e avançar em novas plataformas, não há fomento. Já o modelo francês permitiu o surgimento de empresas como a Ubisoft, um dos grandes estúdios de games do planeta, responsável por fenômenos como "Assassin's Creed" e o intrigante "Watch Dogs". Sucessos globais, como "Heavy Rain", tiveram apoio direto do CNC. Em outras palavras, nossa visão de "audiovisual" --salvo poucas exceções-- ainda remonta a um mundo de antes da internet.
Outra questão é dar continuidade aos avanços. Por exemplo, na regulação do Ecad, entidade que arrecada direitos autorais. O órgão andou desgovernado por anos, até ser condenado em 2013 por formação de cartel e outros ilícitos. Graças à mobilização dos artistas e músicos, o Congresso aprovou uma nova lei reformulando sua regulação. Uma das tarefas do novo ministério é implementar a nova lei, impedindo que as más práticas anteriores se repitam.
Mas o mais importante será pensar grande de novo. Com seu orçamento diminuto, o MinC pode ter impacto de larga escala se souber inspirar e apontar caminhos. Ele está no lugar certo para se debruçar sobre temas estruturantes, conectando-os a outras esferas sociais, da educação à produção de mídia, das periferias à política externa.
READER
JÁ ERA Achar que aprender a programar é perfumaria
JÁ É Programaê.org.br, plataforma gratuita na web para ensinar crianças a programar
JÁ VEM CodeSchool.com e seu aplicativo para ensinar programação direto no celular

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Mary Moore

Dona de casa passa 6 meses no encalço de ministro e do dono de uma rede de farmácias para fazer documentário sobre a saúde no país
ELIANE TRINDADEDE SÃO PAULOA dona de casa Mary Canitto, 78, teve seus dias de Michael Moore. A exemplo do documentarista que colocava seu boné e empunhava um megafone para tentar entrevistar figurões avessos a questões incômodas nos Estados Unidos, a aposentada de São Bernardo do Campo (SP) fez o mesmo como protagonista do documentário "Saúde S.A.".
Como em "Roger & Me", que narra a aventura de Moore para contatar o presidente da General Motors, a seguidora de Moore ficou no encalço do então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e do dono da rede de farmácias Ultrafarma, Sidney Oliveira.
"Eu deixava meu marido na cama e saía para filmar, pensando em melhorar a saúde no país", diz. O documentário mostra as andanças de "Mary Moore", entre abril e setembro de 2013, para cuidar do marido, vítima de um AVC, e da filha, que se tratava de um câncer no ovário.
Ao contrário do americano, o estilo de Mary é quase maternal. "Eu sei que o senhor é uma boa pessoa... Queria saber se anda bem de saúde", perguntou ela a Padilha.
Em vez de inquirir Padilha sobre "home care" para pacientes como o seu marido, Mary demonstrou preocupação com ele. "Eu sei que quando a pessoa viaja não consegue se alimentar direito."
"Minha filha viu o ministro saindo de carro e foi atrás dele. Ele voltou pra falar comigo, mas não me deu muita bola." Padilha a encaminhou para a sua chefia de gabinete.
Menos sorte ela teve com o dono da Ultrafarma. Ele agendou entrevista em que seria indagado sobre o mercado da saúde e preços de medicamentos, mas desmarcou.
Como ele não atendeu a insistentes pedidos, Mary passou a andar com um boneco de papelão em tamanho real dele. Procurado pela Folha, Oliveira não se manifestou.
As cenas são um dos ponto de discórdia entre os diretores, Newton Canitto e Eduardo Benain, e a produtora Origami Cultural.
Os produtores aprovaram junto ao Ministério da Cultura uma versão na qual personagens polêmicos foram desfocados ou cortados.
No Festival de Cinema de Paraty, no último fim de semana, a versão original, sem cortes, não foi exibida devido a notificação judicial atendendo a pedido dos produtores.
"Eles querem lançar uma versão clandestina do filme", defende-se a produtora Edina Fujii, que teme processos.
"Assumimos na tela o nosso fracasso em fazer um filme político. Não conseguimos entrevistar ninguém dos grandes laboratórios nem de planos de saúde ou autoridades para discutir o tema", afirma Benain.
DESPEDIDA DO PAI
O roteiro original, que seguia uma linha sociológica, foi abandonado, dando lugar ao confessional. É quando as câmeras se voltam para o sobrado dos Canitto no ABC.
Além de dirigir a mãe, Newton, que é roteirista da Rede Globo e foi secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, registrou a despedida do pai. Athenoges Canitto morreu em outubro de 2013.
"O filme é dedicado a ele", conta o diretor de 40 anos. "Filmar a minha família doente foi uma espécie de terapia. O filme é muito pessoal", completa Newton.
Em uma das cenas finais, seu Athenoges se despede dos familiares com uma frase do astrônomo Carl Sagan. "Nós somos energia e somos para sempre. Sigam seus sonhos."
Mary agora milita pelo lançamento da obra. "É bom as outras pessoas também poderem ver que a vida é assim. Coisas boas e ruins vão e vêm. Eu tive muita força", diz ela.
Lourdes, 54, sua filha mais velha, se viu coadjuvante do filme. "Papai ficou doente e eu era muito apegada a ele. Um ano depois, senti um inchaço e fui fazer exames. O cisto no ovário era câncer."
Levou três meses para ser operada. "Estava trocando de emprego e o meu antigo convênio queria me chutar. Entrei com mandado de segurança para ser operada."
Participar do documentário foi uma "catarse". "Saí do foco da doença. Não somos só nós. São problemáticas de saúde, que a população lida todos os dias." Ela se deixou filmar raspando a cabeça, quando os cabelos começaram a cair pós-quimioterapia.
"Por que isso não pode ser mostrado no cinema?", pergunta Mary, em seu momento Michael Moore, já no fim da entrevista.
Em seguida, porém, ela volta à pele da mãezona. "Bastante saúde e coisas boas pra você", despede-se como fez com o ministro e como teria feito, provavelmente, com Oliveira se tivesse sido recebida. Folha, 06.11.2014.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DANIEL AARÃO REIS: O poder dos melhores

O que impressiona nas elites políticas são seus privilégios e a ausência de mecanismos de controle
Os dicionários informam que a aristocracia, em sentido amplo, pode ser compreendida como o governo dos melhores. Monopolizado por um número reduzido de pessoas privilegiadas, não raro por herança.
O termo tem sido aplicado às elites financeiras mundiais, distanciadas dos padrões dos cidadãos comuns. Vivem em um mundo distinto, com meios próprios de socialização, de transporte, de trabalho e de vida, transmitidos aos herdeiros. Beneficiários de um processo demencial de concentração de riqueza, evidenciado pelos estudos de Thomas Piketty, não há crise que as abale, e da qual não extraiam proveitos suplementares, como observado na que se iniciou em 2008, cujos efeitos se estendem até hoje, mas sem alcançar seus altos poderes. Uma característica suplementar é a absoluta falta de controle social sobre essas gentes. Parecem não depender de ninguém, salvo dos que produzem as riquezas que acumulam e concentram em suas mãos.
As recentes eleições têm feito pensar em que medida as elites políticas e econômicas deste país não mereceriam o título de "aristocráticas".
Das econômicas algo se pode dizer, apesar de cobertas pelo manto da discrição e do segredo. Voam em outras altitudes, de preferência, de helicópteros. Altitudes maiores ainda, estratosféricas, alcançam suas margens de lucro, mesmo descontadas as comissões pagas aos partidos e governos. Já as elites políticas, coitadas, pela própria natureza de suas atividades, são obrigadas a se descobrir e, mesmo quando se escondem, tendem a ser descobertas, "malgré elles-mêmes" e seus excelentes advogados.
O que impressiona nas elites políticas são seus privilégios e a ausência de mecanismos de controle sobre o que fazem ou deixam de fazer. Uma coisa está evidentemente ligada à outra.
Os privilégios vieram num crescendo. Tradicionais, foram potencializados no tempo da ditadura e permaneceram como herança, intocada e aperfeiçoada. Assim, os representantes têm muito mais chances de permanecer como tais do que qualquer outro cidadão. Ou de se substituírem por filhos, parentes ou amigos, limitando drasticamente as margens de uma efetiva renovação.
O único mecanismo de controle disponível é o voto. Mas ele é raramente possível, eis que os mandatos são longos em demasia, sem contar o direito à reeleição, em que o uso e o abuso da "máquina pública" acrescem as desigualdades já referidas. Condicionados por campanhas milionárias, em que se aliam --e se entrelaçam-- as elites econômicas e políticas, os cidadãos fazem o possível para escolher os seus candidatos. Quase sempre em vão. O resultado é o alarmante crescimento das abstenções e dos votos brancos e nulos, com a perigosa deslegitimação dos representantes eleitos.
Para substituir o poder dos melhores pelo poder das maiorias, será necessário democratizar a democracia. Um desafio para a voz rouca das ruas. Se ela não se manifestar e não se organizar, o poder aristocrático ficará aí, expondo suas vísceras, como uma carniça a céu aberto.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Clóvis Rossi: Não, não podemos

Movimento dos indignados morreu no Brasil, mas na Espanha criou um grupo que irriga o debate público
Era uma vez um movimento de protesto que inundou as ruas com suas reivindicações. Brasil-2013? Sim, mas também Espanha nos anos de crise intensa iniciados em 2008. A coincidência termina aí. Infelizmente. No Brasil, as ruas foram esvaziadas. Os jovens que as ocupavam tornaram-se de novo invisíveis.
Na Espanha, ainda que as ruas também tenham sido esvaziadas, o movimento dos indignados refluiu para assembleias em bairros ou cidades e, a partir delas, criou uma instância o mais parecida possível com um partido político.
Chama-se Podemos, capturou 1,2 milhão de votos nas eleições europeias de maio passado e elegeu cinco eurodeputados.
Resume Joaquín Prieto, jornalista de "El País": "Esta opção recolheu o descontentamento e despertou ilusões políticas em muitos que as haviam perdido". Neste domingo (19), o "Podemos" fez a sua assembleia para discutir os rumos e projetos políticos --um passo mais em direção à institucionalização.
Enquanto isso, no Brasil, o descontentamento não encontra um canal de manifestação. Os números da eleição do dia 5 são eloquentes: a coligação que governa não passou de 30,5% dos votos possíveis (43 milhões em um eleitorado total de 142 milhões, arredondando).
É óbvio que o segundo colocado, Aécio Neves, teve apoio ainda menor (24%). Significa dizer que o/a futuro/a presidente terá a hostilidade ou a indiferença original de 70% dos eleitores (se for Dilma) ou de 75%, se for Aécio.
É óbvio que, seja qual for o eleito, poderá recuperar simpatias e infundir ilusões. Mas a campanha do segundo turno não foi um primeiro passo nessa direção.
Ao contrário, está sendo a campanha do medo, em vez da campanha da esperança. Medo de que continue o modo PT de governar ou de que volte o modo PSDB.
Não deixa de ser curioso: os dois partidos produziram em seus 20 anos de domínio do poder federal um país razoavelmente melhor do que o que encontraram.
No entanto, ao adotarem, ambos os candidatos, a ideia de que é preciso mudar, parecem estar confessando que se esgotou o ciclo em que um e depois o outro se assentaram.
O problema, para mudar, é que o constrangimento das contas públicas deixa pouca margem de manobra para inovações, pelo menos para inovações que custem dinheiro --e quase todas custam.
Na Espanha, o Podemos lançou um tema que nem remotamente assoma no Brasil: o pagamento da dívida. Propõe não o calote, mas uma reestruturação ordenada, no pressuposto de que se trata de "uma questão de eficiência econômica e de necessidade".
No Brasil, a rubrica que mais consome recursos públicos, depois da Previdência, é o pagamento dos juros da dívida, mas trata-se de um item tabu. Reestruturar pode ou não ser factível, mas interditar o debate sobre o tema, como o fazem os grandes partidos, só torna mais urgente a necessidade de um Podemos tapuia, que tente resgatar e içar a bandeira das ruas.
Pena que ganhar R$ 0,20 (a menos nas tarifas de transporte) bastou para calar o grito de "podemos". 
Folha, 21.10.2014

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A cabeça dos candidatos, nos pés - Elio Gaspari

Ora, direis, olhar sapatos. Parece uma trivialidade, mas é uma aula de economia e de costumes. Dilma Rousseff calça a marca francesa Louis Vuitton, e Aécio Neves, a italiana Ferragamo. Essa característica dos dois candidatos foi percebida pela repórter Ana Cláudia Guimarães. Se fizessem isso nos Estados Unidos, estariam fritos. Há tempo, o candidato democrata George McGovern comeu o pão que Asmodeu amassou porque visitou uma fábrica de sapatos calçando mocassins italianos.
O governo da doutora sobretaxa os sapatos chineses baratinhos e, com isso, encarece os produtos comprados pelo andar de baixo. Tudo bem, pois o Brasil já foi um dos maiores fabricantes de calçados do mundo e perdeu a posição. É compreensível que o setor receba algum tipo de proteção. Contudo fica difícil entender que um emergente não possa comprar sapatos chineses por R$ 50 e a presidente da República faça campanha calçando Vuitton (R$ 1.200 para um modelo simples).
No último ano, a indústria calçadista brasileira perdeu pelo menos 20 mil postos de trabalho. Há 20 anos, empregava 500 mil pessoas e, agora, ocupa 300 mil. O mercado interno encolheu e, em agosto, as exportações brasileiras de calçados caíram 3% em relação a 2013.
A doutora também poderia dispensar o xale Vuitton que usou na visita do papa e repetiu numa assembleia da ONU. Quando por nada, para evitar o único ponto que tem em comum com os hábitos de Fernando Collor. Ele viajava com um lote de malas dessa grife. O andar de cima nacional tem um fraco por etiquetas estrangeiras. Quase sempre, esse tique destina-se a sinalizar uma exorbitância de poder aquisitivo. Quem não se lembra da senhora Sérgio Cabral numa rua de Paris mostrando a sola vermelha de seus Louboutin (R$ 2.500 o par)? Enquanto essa preferência vem de cidadãos comuns, ninguém tem nada a ver com isso, mas, quando presidentes e candidatos vão a eventos públicos com semelhantes adereços, ensinam algo.
Os sapatos Ferragamo de Aécio Neves estão na mesma faixa de preço dos Vuitton de Dilma, e sua grife estabeleceu-se a partir da qualidade e do conforto de seus produtos. No dois casos, pode-se argumentar que esses sapatos seriam mais confortáveis, pois usam couros finos. Vá lá, mas se o negócio é conforto nos pés, o problema já foi resolvido pela rainha Elizabeth. Antes de calçá-los, ela os manda para que senhoras os usem, amaciando-os.
Aécio e Dilma contrapuseram-se a Marina Silva. Ela usa sapatos das marcas Beira Rio e Renner (R$ 100 pelo par). Logo da Renner, uma marca fundada no início do século 20 por um neto de alemães. Ela teve uma linha de produção de louças e o general Ernesto Geisel usava um jogo de pratos Renner em casa, com as suas iniciais. Ganhara-os de um membro da família que fora seu companheiro de infância em Bento Gonçalves (RS). Quando ia deixar o governo, um grupo de grã-finos quis presenteá-lo com um serviço de porcelana que pertencera ao magnata Eduardo Guinle. Chiquésimo. Mandou-os passear e divertia-se mostrando a louça banal mandada pelo amigo. Folha, 24.09.14

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O anti-Marcos Valério

O petrocomissário Paulo Roberto Costa percebeu que arriscava ser condenado a 40 anos de prisão
Paulo Roberto Costa decidiu não ser o novo Marcos Valério. Decidiu também proteger a liberdade dos familiares que envolveu em seus negócios. Aos 53 anos, Valério, o publicitário mineiro celebrizado com o mensalão, foi condenado a 40 anos de cadeia. Desde o dia 29 de agosto, Costa depõe para o Ministério Público, com vídeo e áudio, em longas sessões diárias. Durante oito anos, ele dirigiu o setor de abastecimento e refino da Petrobras e a doutora Dilma disse ser "estarrecedor" que as denúncias e a confissão partam de um "quadro de carreira" da empresa. É verdade, pois ele entrou para a Petrobras em 1978. Contudo só ascendeu à diretoria porque foi indicado pelo deputado José Janene. Depois de uma militância no malufismo, Janene aliou-se ao PT do Paraná, tornando-se um dos pilares do mensalão. Isso a doutora sabia. Bastava ler jornal.
Os procuradores que ouvem Paulo Roberto acautelaram-se para impedir que entregue pão dormido fingindo colaborar com a investigação. O acervo de informações do doutor tem três vertentes. Numa, estão sua relações com políticos. Noutra, a banda das empresas, desde grandes multinacionais que operam no mercado de petróleo a fornecedores. A lista das empreiteiras, como a dos políticos, é a dos suspeitos de sempre. Já as companhias de comércio de petróleo formam uma lista nova, com cifras e nomes. Finalmente, Paulo Roberto Costa e seu cúmplice, o doleiro Alberto Youssef, deverão mostrar suas contas ao Ministério Público. Isso será facilitado porque ambos estão presos e Youssef é um veterano colaborador. Daí poderão surgir os caminhos do dinheiro. As provas, enfim.
Circula a informação de que, das três vertentes, o Ministério Público concluiu a oitiva da primeira. Ele pode dizer o que quiser, mas só exercerá o benefício se produzir provas. Listas de nomes servem para nada. Paulo Roberto Costa é um homem organizado. Sabe-se desde abril que a Polícia Federal apreendeu em seu escritório transferências de dinheiro de duas das três maiores tradings de petróleo e minérios do mundo, a Glencore e a Trafigura. A primeira, uma empresa anglo-suíça, é maior que a Petrobras. A outra comprou o porto da MMX em Itaguaí. Nessa papelada, como ocorre há décadas, apareceram pagamentos suspeitos de eternos fregueses, como a Camargo Corrêa e a OAS. Paulo Roberto Costa guardava papéis desse tipo no escritório. Talvez tenha mantido um arquivo eletrônico em lugar seguro, sobretudo quando viu o que sucedeu a Marcos Valério.
Se as oitivas do doutor forem profícuas, o escândalo do pretrocomissariado será duradouro, o maior e melhor documentado da história nacional. Coisa para durar anos, estendendo-se à Justiça de outros países. É sempre bom lembrar que o cartel da Alstom, com suas propinas para tucanos, só andou porque teve a colaboração e o estímulo do Judiciário suíço. Marc Rich, o fundador da Glencore, encrencou-se no Estados Unidos e tomou sentenças que somaram 300 anos de cadeia. Foi perdoado pelos instintos jurídicos e comerciais do presidente Bill Clinton, no seu último dia de governo. Já a Trafigura foi condenada por exportar lixo tóxico para a África e encrencou-se numa história de propinas para o secretário-geral do partido do governo em Zâmbia. Folha, 10.09.2014.
www.movimentocidadaocomum.blogspot.com

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quarta-feira, 9 de abril de 2014

ELIO GASPARI: Vem, Lula


Uma eleição presidencial com Nosso Guia na disputa faria bem a todo mundo, inclusive a ele
Quem viu a final do vôlei masculino da Olimpíada de Londres há de se lembrar. O Brasil ganhara dois sets e faltava só fechar um ponto para levar o ouro quando o técnico russo botou Dmitriy Muserskiy (2m10) na quadra. Resultado: a Rússia fez o ponto, levou os dois sets seguintes e ficou com o ouro. Se o PT achar que a reeleição de Dilma corre perigo, deixará Lula no banco para agradar seus adversários?
Tudo ficaria melhor se Lula saísse como candidato a presidente. Por cinco razões:
1) Porque é maior de idade e está no exercício de seus direitos políticos.
2) Porque o "volta, Lula" vem enfraquecendo o governo do poste que ele ajudou a botar no Planalto.
3) Porque uma parte do desgaste que está corroendo a doutora Dilma é dele e foi-lhe jogado no colo. Afinal, o mensalão e as petrorroubalheiras nasceram na sua administração.
4) Porque a outra parte do desgaste da doutora está associada ao mito da gerentona, criado por ele. Afinal, é a "mãe do PAC".
5) Porque a transformação do PT num aparelho arrecadador de fundos teve o seu permanente beneplácito, tanto durante os oito anos em que esteve na Presidência, como depois. O deputado André Vargas não é um ponto fora da curva, mas uma luzinha dentro da estrela vermelha.
As urnas decidirão se o PT deve receber um novo mandato presidencial. Quatro anos de Dilma mostraram que o poder é mais do partido do que do ocupante do Planalto. Isso não deriva de qualquer malignidade intrínseca do comissariado, mas do fato de que ele é o único partido organizado do país. Se os outros não se organizaram e o máximo que fazem é combinar jantares, o problema é deles. Vitorioso, o PT terá 16 anos ininterruptos de poder. Isso jamais aconteceu na história brasileira e não fará diferença se esse mandato for exercido por Lula ou Dilma. Pelo contrário, para o bem ou para o mal, ele representa melhor a estrela que fundou do que ela, um convertida tardia.
A entrada de Lula na disputa daria maior clareza à escolha. Se ele é um político prestigiado, com 37% dos entrevistados pelo Datafolha dispostos a votar em quem tiver seu apoio, torcer para que fique no banco de reservas é uma ilusão.
Chegou-se a abril e os dois candidatos da oposição produziram apenas listas de celebridades e palavrório. Sabe-se mais das diferenças entre os prováveis candidatos republicanos para a eleição americana de 2016 do que das plataformas de Aécio Neves e Eduardo Campos.
Há pouco a Câmara aprovou uma medida provisória com centenas de contrabandos. Entre eles, mais uma estia para sonegadores de impostos e um mimo para os planos de saúde que não cumprem os contratos que vendem aos clientes. Isso só foi conseguido por um acordo de lideranças parlamentares, com o apoio das bancadas oposicionistas.
Nas três últimas eleições presidenciais os candidatos tucanos escondiam Fernando Henrique Cardoso, sem explicar por quê. Agora, Aécio Neves e Eduardo Campos escondem que fazem oposição a Lula. Talvez acreditem que só devem falar claro às vésperas da eleição, seguindo protocolos estabelecidos pelos marqueteiros. Nas eleições anteriores fizeram isso e, derrotados, procuraram culpar essa nova modalidade de astrólogos.
Folha, 09.04.2014