quarta-feira, 22 de outubro de 2014

DANIEL AARÃO REIS: O poder dos melhores

O que impressiona nas elites políticas são seus privilégios e a ausência de mecanismos de controle
Os dicionários informam que a aristocracia, em sentido amplo, pode ser compreendida como o governo dos melhores. Monopolizado por um número reduzido de pessoas privilegiadas, não raro por herança.
O termo tem sido aplicado às elites financeiras mundiais, distanciadas dos padrões dos cidadãos comuns. Vivem em um mundo distinto, com meios próprios de socialização, de transporte, de trabalho e de vida, transmitidos aos herdeiros. Beneficiários de um processo demencial de concentração de riqueza, evidenciado pelos estudos de Thomas Piketty, não há crise que as abale, e da qual não extraiam proveitos suplementares, como observado na que se iniciou em 2008, cujos efeitos se estendem até hoje, mas sem alcançar seus altos poderes. Uma característica suplementar é a absoluta falta de controle social sobre essas gentes. Parecem não depender de ninguém, salvo dos que produzem as riquezas que acumulam e concentram em suas mãos.
As recentes eleições têm feito pensar em que medida as elites políticas e econômicas deste país não mereceriam o título de "aristocráticas".
Das econômicas algo se pode dizer, apesar de cobertas pelo manto da discrição e do segredo. Voam em outras altitudes, de preferência, de helicópteros. Altitudes maiores ainda, estratosféricas, alcançam suas margens de lucro, mesmo descontadas as comissões pagas aos partidos e governos. Já as elites políticas, coitadas, pela própria natureza de suas atividades, são obrigadas a se descobrir e, mesmo quando se escondem, tendem a ser descobertas, "malgré elles-mêmes" e seus excelentes advogados.
O que impressiona nas elites políticas são seus privilégios e a ausência de mecanismos de controle sobre o que fazem ou deixam de fazer. Uma coisa está evidentemente ligada à outra.
Os privilégios vieram num crescendo. Tradicionais, foram potencializados no tempo da ditadura e permaneceram como herança, intocada e aperfeiçoada. Assim, os representantes têm muito mais chances de permanecer como tais do que qualquer outro cidadão. Ou de se substituírem por filhos, parentes ou amigos, limitando drasticamente as margens de uma efetiva renovação.
O único mecanismo de controle disponível é o voto. Mas ele é raramente possível, eis que os mandatos são longos em demasia, sem contar o direito à reeleição, em que o uso e o abuso da "máquina pública" acrescem as desigualdades já referidas. Condicionados por campanhas milionárias, em que se aliam --e se entrelaçam-- as elites econômicas e políticas, os cidadãos fazem o possível para escolher os seus candidatos. Quase sempre em vão. O resultado é o alarmante crescimento das abstenções e dos votos brancos e nulos, com a perigosa deslegitimação dos representantes eleitos.
Para substituir o poder dos melhores pelo poder das maiorias, será necessário democratizar a democracia. Um desafio para a voz rouca das ruas. Se ela não se manifestar e não se organizar, o poder aristocrático ficará aí, expondo suas vísceras, como uma carniça a céu aberto.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Clóvis Rossi: Não, não podemos

Movimento dos indignados morreu no Brasil, mas na Espanha criou um grupo que irriga o debate público
Era uma vez um movimento de protesto que inundou as ruas com suas reivindicações. Brasil-2013? Sim, mas também Espanha nos anos de crise intensa iniciados em 2008. A coincidência termina aí. Infelizmente. No Brasil, as ruas foram esvaziadas. Os jovens que as ocupavam tornaram-se de novo invisíveis.
Na Espanha, ainda que as ruas também tenham sido esvaziadas, o movimento dos indignados refluiu para assembleias em bairros ou cidades e, a partir delas, criou uma instância o mais parecida possível com um partido político.
Chama-se Podemos, capturou 1,2 milhão de votos nas eleições europeias de maio passado e elegeu cinco eurodeputados.
Resume Joaquín Prieto, jornalista de "El País": "Esta opção recolheu o descontentamento e despertou ilusões políticas em muitos que as haviam perdido". Neste domingo (19), o "Podemos" fez a sua assembleia para discutir os rumos e projetos políticos --um passo mais em direção à institucionalização.
Enquanto isso, no Brasil, o descontentamento não encontra um canal de manifestação. Os números da eleição do dia 5 são eloquentes: a coligação que governa não passou de 30,5% dos votos possíveis (43 milhões em um eleitorado total de 142 milhões, arredondando).
É óbvio que o segundo colocado, Aécio Neves, teve apoio ainda menor (24%). Significa dizer que o/a futuro/a presidente terá a hostilidade ou a indiferença original de 70% dos eleitores (se for Dilma) ou de 75%, se for Aécio.
É óbvio que, seja qual for o eleito, poderá recuperar simpatias e infundir ilusões. Mas a campanha do segundo turno não foi um primeiro passo nessa direção.
Ao contrário, está sendo a campanha do medo, em vez da campanha da esperança. Medo de que continue o modo PT de governar ou de que volte o modo PSDB.
Não deixa de ser curioso: os dois partidos produziram em seus 20 anos de domínio do poder federal um país razoavelmente melhor do que o que encontraram.
No entanto, ao adotarem, ambos os candidatos, a ideia de que é preciso mudar, parecem estar confessando que se esgotou o ciclo em que um e depois o outro se assentaram.
O problema, para mudar, é que o constrangimento das contas públicas deixa pouca margem de manobra para inovações, pelo menos para inovações que custem dinheiro --e quase todas custam.
Na Espanha, o Podemos lançou um tema que nem remotamente assoma no Brasil: o pagamento da dívida. Propõe não o calote, mas uma reestruturação ordenada, no pressuposto de que se trata de "uma questão de eficiência econômica e de necessidade".
No Brasil, a rubrica que mais consome recursos públicos, depois da Previdência, é o pagamento dos juros da dívida, mas trata-se de um item tabu. Reestruturar pode ou não ser factível, mas interditar o debate sobre o tema, como o fazem os grandes partidos, só torna mais urgente a necessidade de um Podemos tapuia, que tente resgatar e içar a bandeira das ruas.
Pena que ganhar R$ 0,20 (a menos nas tarifas de transporte) bastou para calar o grito de "podemos". 
Folha, 21.10.2014