quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Mary Moore

Dona de casa passa 6 meses no encalço de ministro e do dono de uma rede de farmácias para fazer documentário sobre a saúde no país
ELIANE TRINDADEDE SÃO PAULOA dona de casa Mary Canitto, 78, teve seus dias de Michael Moore. A exemplo do documentarista que colocava seu boné e empunhava um megafone para tentar entrevistar figurões avessos a questões incômodas nos Estados Unidos, a aposentada de São Bernardo do Campo (SP) fez o mesmo como protagonista do documentário "Saúde S.A.".
Como em "Roger & Me", que narra a aventura de Moore para contatar o presidente da General Motors, a seguidora de Moore ficou no encalço do então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e do dono da rede de farmácias Ultrafarma, Sidney Oliveira.
"Eu deixava meu marido na cama e saía para filmar, pensando em melhorar a saúde no país", diz. O documentário mostra as andanças de "Mary Moore", entre abril e setembro de 2013, para cuidar do marido, vítima de um AVC, e da filha, que se tratava de um câncer no ovário.
Ao contrário do americano, o estilo de Mary é quase maternal. "Eu sei que o senhor é uma boa pessoa... Queria saber se anda bem de saúde", perguntou ela a Padilha.
Em vez de inquirir Padilha sobre "home care" para pacientes como o seu marido, Mary demonstrou preocupação com ele. "Eu sei que quando a pessoa viaja não consegue se alimentar direito."
"Minha filha viu o ministro saindo de carro e foi atrás dele. Ele voltou pra falar comigo, mas não me deu muita bola." Padilha a encaminhou para a sua chefia de gabinete.
Menos sorte ela teve com o dono da Ultrafarma. Ele agendou entrevista em que seria indagado sobre o mercado da saúde e preços de medicamentos, mas desmarcou.
Como ele não atendeu a insistentes pedidos, Mary passou a andar com um boneco de papelão em tamanho real dele. Procurado pela Folha, Oliveira não se manifestou.
As cenas são um dos ponto de discórdia entre os diretores, Newton Canitto e Eduardo Benain, e a produtora Origami Cultural.
Os produtores aprovaram junto ao Ministério da Cultura uma versão na qual personagens polêmicos foram desfocados ou cortados.
No Festival de Cinema de Paraty, no último fim de semana, a versão original, sem cortes, não foi exibida devido a notificação judicial atendendo a pedido dos produtores.
"Eles querem lançar uma versão clandestina do filme", defende-se a produtora Edina Fujii, que teme processos.
"Assumimos na tela o nosso fracasso em fazer um filme político. Não conseguimos entrevistar ninguém dos grandes laboratórios nem de planos de saúde ou autoridades para discutir o tema", afirma Benain.
DESPEDIDA DO PAI
O roteiro original, que seguia uma linha sociológica, foi abandonado, dando lugar ao confessional. É quando as câmeras se voltam para o sobrado dos Canitto no ABC.
Além de dirigir a mãe, Newton, que é roteirista da Rede Globo e foi secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, registrou a despedida do pai. Athenoges Canitto morreu em outubro de 2013.
"O filme é dedicado a ele", conta o diretor de 40 anos. "Filmar a minha família doente foi uma espécie de terapia. O filme é muito pessoal", completa Newton.
Em uma das cenas finais, seu Athenoges se despede dos familiares com uma frase do astrônomo Carl Sagan. "Nós somos energia e somos para sempre. Sigam seus sonhos."
Mary agora milita pelo lançamento da obra. "É bom as outras pessoas também poderem ver que a vida é assim. Coisas boas e ruins vão e vêm. Eu tive muita força", diz ela.
Lourdes, 54, sua filha mais velha, se viu coadjuvante do filme. "Papai ficou doente e eu era muito apegada a ele. Um ano depois, senti um inchaço e fui fazer exames. O cisto no ovário era câncer."
Levou três meses para ser operada. "Estava trocando de emprego e o meu antigo convênio queria me chutar. Entrei com mandado de segurança para ser operada."
Participar do documentário foi uma "catarse". "Saí do foco da doença. Não somos só nós. São problemáticas de saúde, que a população lida todos os dias." Ela se deixou filmar raspando a cabeça, quando os cabelos começaram a cair pós-quimioterapia.
"Por que isso não pode ser mostrado no cinema?", pergunta Mary, em seu momento Michael Moore, já no fim da entrevista.
Em seguida, porém, ela volta à pele da mãezona. "Bastante saúde e coisas boas pra você", despede-se como fez com o ministro e como teria feito, provavelmente, com Oliveira se tivesse sido recebida. Folha, 06.11.2014.

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